Exploração da feminilidade nos videogames modernos

A representação da feminilidade nos videogames passou por transformações significativas nas últimas décadas. O que antes servia como fuga imaginativa ou simples moldura estética passou a integrar estratégias de mercado com impacto direto nas escolhas narrativas e visuais da indústria.

Essa mudança revela tensões entre inclusão genuína e exploração simbólica. Estúdios e plataformas começaram a reconhecer o valor da diversidade, mas frequentemente recaem na utilização da imagem feminina como diferencial comercial, sem compromisso com a complexidade dessas personagens.

Construção da feminilidade como refúgio

Nas décadas de 1980 e 1990, a presença de personagens femininas nos jogos era limitada e, quando existia, recorria a estereótipos consolidados no imaginário coletivo. Lara Croft, por exemplo, surgiu em 1996 com forte apelo sexualizado. Apesar de protagonista, sua postura estética reforçava uma visão de mercado voltada predominantemente ao público masculino.

Esse tipo de figura possibilitava aos jogadores homens uma experiência de alteridade idealizada: forte, sensual, silenciosa. O uso da feminilidade nesse contexto servia como válvula de escape — tanto para tensões sociais quanto para a idealização de um corpo e comportamento femininos sem as complexidades da vida real.

Note-se que esses aspectos não surgiam de maneira isolada. Naquele período, séries televisivas, revistas e o próprio cinema produziam modelos semelhantes de representação, o que legitimava esse padrão. O avatar feminino era, assim, uma extensão de um mundo moldado por e para o olhar masculino.

Entretanto, mulheres também jogavam — mesmo quando a indústria ignorava sua presença. Elas reinterpretavam esses ícones, criavam sentidos próprios e muitas vezes encontravam empoderamento em espaços que, paradoxalmente, as marginalizavam. A exploração da feminilidade como refúgio dividiu-se entre consumo e resistência.

Avanços na representação feminina

Nos anos 2000, cresceram os debates sobre representatividade enquanto desenvolvedores independentes e comunidades online passaram a ter mais voz. A feminilidade nos games começou a ganhar diversidade: personagens com mais profundidade narrativa, formas corporais variadas e vivências realistas.

Jogos como The Last of Us Part II (2020) e Horizon Zero Dawn (2017) se destacam nesse cenário. Ellie e Aloy são exemplos de protagonistas complexas, com personalidades construídas para além de sua aparência. Elas enfrentam desafios narrativos e emocionais que colocam em questão papéis sociais normativos ou limitantes.

Contudo, a ampliação de representações não significa ruptura total com padrões antigos. Muitas produções usaram a suposta diversidade feminina como fachada, promovendo personagens "fortes" que ainda reproduzem aspectos visuais padronizados. Quando não há real preocupação em tornar a presença feminina narrativa e tematicamente relevante, ela reduz-se a tática promocional.

Além disso, streamer e influenciadoras passaram a ter papel decisivo na reformulação desse espaço. A presença de mulheres nas transmissões ao vivo e nos eSports revelou tanto uma forte resistência do machismo estrutural quanto o desejo de reformular o que significa ser mulher nesse ambiente.

Feminilidade como estratégia de marketing

A virada da representatividade em direção ao mercado é um ponto-chave dessa evolução. A indústria de jogos, reconhecendo o poder de consumo das mulheres, transformou a presença feminina em recurso publicitário. Isto é, tornou-a parte de campanhas para expandir audiências, sem necessariamente mudar estruturas internas.

Um exemplo claro está nas campanhas da franquia Assassin’s Creed. Sob pressão do público por maior inclusão, a Ubisoft passou a oferecer escolhas entre personagens homens e mulheres, mas em alguns títulos a narrativa claramente favorecia figuras masculinas, sugerindo uma implementação desigual.

A adoção da diversidade marca uma bifurcação: por um lado, é fruto dos questionamentos da base de fãs e do ativismo de coletivos ligados a gênero; por outro, obedece à lógica de um capitalismo que adapta sua superfície para ampliar vendas sem confrontar seu núcleo.

Marcas também perceberam esse movimento. Grandes feiras como a E3 e eventos como a Brasil Game Show passaram a destacar criadoras de conteúdo femininas, mas muitas vezes negligenciam espaços estruturais de decisão para essas protagonistas. A vitrine se transforma, mas os bastidores nem sempre acompanham a mesma velocidade.

Contradições e desafios futuros

A representação da feminilidade nos games está num momento de transição. A maior visibilidade de personagens femininas, streamers e profissionais da indústria é um avanço, sem dúvida, mas não elimina contradições. A segmentação de mercado pode favorecer a formatar identidades em vez de acolhê-las legítima e humanamente.

Segmentar pode ser duplamente problemático: se por um lado responde a demandas específicas (como campanhas voltadas a meninas e mulheres), por outro limita o escopo de personagens e histórias ao papel de nicho, isolando temas que deveriam integrar uma abordagem universal.

Outro ponto crucial é a interseccionalidade. Ainda são escassas as protagonistas femininas que fujam do padrão branco, magro e heterossexual. A presença de mulheres trans nos jogos, por exemplo, continua marginal, mesmo com avanços importantes como os vistos em Tell Me Why (2020), da Dontnod.

Avançar nesse campo não significa apenas criar mais personagens femininas: exige abrir espaço para que mulheres produzam seus próprios jogos, ocupem cargos de liderança e determinem os caminhos narrativos da indústria. Só assim deixaremos de tratar a feminilidade como território decorativo ou recurso de mercado.

É nessa tensão constante entre refúgio pessoal e vitrine comercial que se constrói a feminilidade nos videogames contemporâneos. Ainda há muito o que ser jogado — e principalmente, muito o que ser dito pela voz das mulheres que escreverão os próximos capítulos dessa história.

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